Sala de Estar

Apaguei o cigarro no cinzeiro de pedra e expeli o fumo que tinha boca. Retirei da minha mala o meu telemóvel e fiquei a olhar para aquele aparelho que até então não tinha tido grande utilidade. Muito poucos eram os números que nele continham e mensagens, ou eram da operadora, ou de rapazes que pedinchavam de um modo chato e constante, mais uma noite. Todas noites, lembrava-me daquele dia em que decidi por fim fugir do orfanato. Eram um dia de chuva e o sol mantinha-se escondido por entre as nuvens cinzentas carregadas de água. As crianças tinham por hábito rezar às 22 horas e recolher às 22.30 para aí dormirem. Claro que eu não podia ser excepção mas raras eram as vezes em que rezava, na verdade nunca soube o que isso era e tão pouco para o que servia. De Deus nem podia ouvir falar e tudo isso por saber que os meus pais me tinham deixado na porta daquela maldita habitação. Tinha raiva, algum medo e sentia a que a minha vida não podia piorar dali para a frente, por isso mesmo a única saída era sair dali e procurar algo ou alguém que cuidasse de mim. Após o recolher de todas as crianças e auxiliares daquele orfanato, levantei-me e saí pela janela da sala de refeições, nunca mais voltando. Passei dias na rua, ao vento, à chuva e com fome mas foi uma escolha e desde ai aprendi que nada se tem se não for com esforço. Por muito que não tenha escolhido essa vertente, meti-me no que achei ser mais prático. Roubar começou a fazer parte do meu dia-a-dia e só passado uns anos, as drogas foram como mais uma forma de fugir aos problemas. Verdadeiros amigos contaram-se pelos dedos mas quem quer ser amigo de uma drogada? Ninguém porque até agora sinto-me abandonada como toda a vida me senti. Posso ter dinheiro, uma casa, um carro ou possibilidade de ser alguém na vida, mas a vida que escolhi foi esta e agora, tenho que levar com ela quer queira, quer não!

Depois de estra horas a brincar com os cães, entre muito riso e figuras parvas, a campainha fez-se ouvir por toda a casa. Levantei-me do chão da sala e caminhei até à porta. Deve ser o Axl. Pensei levando uma mão à maçaneta e abrindo a pesada porta de madeira. Não era Axl mas sim um estafeta que trazia nas mãos uma carta e um monte de papéis.
- Brayce Lewis? - Questionou olhando-me.
- Sim a própria. - Respondi olhando-o de sobrolho levantado. Ele estendeu-me o envelope e apontou-me os papéis.
- Faça aqui uma rubrica por favor. - Pediu entregando-me uma caneta e assim assinei o que ele me pediu. - Obrigado e boa tarde. - Sorriu e virou costas, saindo da minha casa. Olhei para a carta e caminhei de novo para a sala. Sentei-me no sofá e abri o envelope tirando de lá de dentro um papel escrito à mão.

“Tinha eu 12 anos quando em 1989 dei à luz uma menina tão bela como tu. Tinha o nariz empinado e os olhos grandes como os do pai. De mim, apenas as mãos pequenas e magras que me fazia lembrar a minha avó. Naquela altura foi bastante difícil esconder de todos que levava no meu ventre Brayce Trümper Lewis. Fazia parte de uma família rica e com uma pose digna perante a sociedade Londrina mas foi assim, que conheci um dos homens mais puros da minha vida. Namoramos às escondidas durante algum tempo e na primeira vez em que nos envolvemos, sem saber bem o que deveríamos fazer, tu foste formada com todo o amor que tínhamos um pelo outro. Sabíamos que ia ser difícil escondermos esta gravidez e foi por isso mesmo, que quando te tive, te deixei naquele orfanato. Na tua cesta permanecia um papel com o teu nome e esse que espero que permaneça nos dias de hoje. Sei que pode ser difícil para ti ler isto mas também foi para nós escrever. Eu chamo-me Merie Lewis e o teu pai Louis Lewis, somos casados há 16 anos e queremos de ti o que nunca tivemos na vida, a nossa filha. Se depois de leres esta carta nos poderes dar uma oportunidade, no envelope está a nossa morada. Com todo o amor e carinho Merie e Louis Lewis.”

Dos meus olhos caiam gordas lágrimas e sinceramente nem eu sabia se devia sentir raiva ou se devia correr para os braços dos meus pais que me abandonaram há 22 anos atrás. Pousei a carta na mesa de centro e encolhi-me no sofá, chorando convulsivamente.

- Lê… - Pedi apontando com o queixo para a carta e abraçando as minhas pernas assim que me sentei no sofá. Limpei de novo as lágrimas com a camisola e solucei.

- Não sei… - Respondi encolhendo os ombros. - Eu passei por tanto Axl…eu tive uma vida de merda e só há dois anos é que consegui ter paz. - Agarrei no comando que controlava toda a casa e fechei um pouco dos estores da sala, retirando os óculos e dando-lhe a ver os meus olhos completamente inchados e vermelhos. - Eles nem devem saber que sou drogada, tão pouco que tenho um curso superior. - Disse deitando a cabeça nos meus joelhos.

- Melhorar o quê Axl? - Olhei-o. - Eu não preciso deles. Eles nunca quiseram saber de mim e agora, passado 22 anos lembram-se que têm uma filha. - Cuspi irritada. - Eu sofri de maus tratos durante 7 anos da minha vida. Fui violada na rua mais que uma vez…eu passei por tanto e agora acontece-me isto! - Disse agarrando nos meus cabeços e chorando cada vez mais.

- Abraça-me… - Pedi escondendo a minha cara nas mãos.

Encolhi os ombros vagamente e olhei para o mesmo sitio que ele. - Scooby anda cá. - Chamei e ele veio a correr para cima de nós, conseguindo fazer-me rir. - Dá um passou-bem ao Axl. - Mandei e o animal esticou a pata para Axl.

- Ele não faz mal a ninguém. - Sorri e passei uma mão pelo dorso de Scooby. - Anda… - Pedi agarrando-lhe na mão e puxando-o comigo para a cave.

- Olha o teu dono sexy. - Disse fazendo-lhe festas debaixo do focinho e ela abanou logo a causda ainda que devagar. Ri-me e dei-te um leve beijo no focinho, levantando-me. - Eu vou limpar aquilo… - Disse passando por ele e saindo da sala.

Parei à porta da sala e sorri ao ver aquela imagem. Era de todo bonita e não era qualquer uma que o via assim com um ser tão ingénuo e desprotegido como aquele. Abanei a cabeça levemente, afastando os meus pensamentos menos próprios dali. Onde é que andas com a cabeça Brayce?! Interroguei-me enquanto me sentava num dos sofás giratórios. - Queres comer alguma coisa? - Questionei olhando-o.

- Desculpa se te dou demasiado trabalho… - Murmurei agarrando no comando do televisor e ligando-o num canal de filmes. - Depois manda-me mensagem para saber da Pinkly isso claro se tiveres tempo. - Tossiquei e coloquei os meus pés no assento do sofá, girando o mesmo com o meu corpo.

- Ninguém diria… - Ri-me revirando os olhos e levantei-me. - Queres comer ou não? É que estou faminta e se não queres comer diz logo! - Olhei-o e fiz um ar de mandona como se fosse uma mãe.

- É óbvio que tenho! - Levantei-me e segui para a cozinha, agarrei numa lata e abri a mesma. Fui buscar uma seringa larga e enci-a com comida de cão, voltando à sala. - Toma... - Dei-lhe a seringa e pousei a lata na mesa de centro.