Entrada

Olhei para ele meio confusa, de onde é que aquele assunto vinha? E ainda por cima, na minha mente pelo menos, era mentira.
-E que me esfaqueassem a mim? -perguntei, relembrando-o do seu querido amigo que me tinha raptado porque queria drogas - Também passei muitos anos em negação que tinha inimigos e afinal, metade da minha vida é feita por eles! - resmunguei, dando uma volta pela sala. Não havia nada para fazer e aquele silêncio era constrangedor.

-Mas eu estou a falar de mim, nunca fizeram nada a mim. - respondi-lhe fechando os olhos e cerrando dentes e punhos, mas continuava a ser horrivel, era como se estivessem a furar o corpo. Nos filmes não era assim, levavam um tiro e ficavam logo todos porreiros. Mas esses vão ao médico E eu não fui nem irei. - Porra Amanda eu preciso de alguma coisa para isto. - resmunguei abrindo os olhos de rompante.

-Claro, só tu é que importas. - contrariei, irritada - Não sejas tão hipócrita! - reclamei - Olha, a única coisa que te vou dar vai ser uma canja! - ri-me e fui até à porta - Isso sempre funcionou, segundo a minha avó! - Oh Amanda não sejas assim, ele levou um tiro! ouvi e ignorei, sem sequer tentar evitar rir-me. Saí da sala e fui até à cozinha, colocando a água a aquecer e massa a coser (omg é assim que se faz canja certo?) e um pouco de sal. Deixei a comida a ficar pronta e fui ver novamente de Axl. - A tua receita está quase pronta! - piquei-o e sentei-me num sofá.

Olhei para ela como se a fosse esganar e voltei a virar a cara revirando os olhos, mais valia ir para um hospital, ia preso mas sem dores.
-Claro, muito obrigado - resmunguei tirando o pano já seco de cima da minha cabeça e a voltar a sentir-me soar. Olhei para o sofá em que estava e tentei levantar-me para ir à casa de banho, mas quando estava a sentar-me parei voltando a deitar-me porque tinha sentido um ponto a romper-se. Mordi o lábio para não vir a dizer um monte de asneiras que me queriam sair da boca e olhei para Amanda com a respiração ofegante - Não tenho fome.

Olhei para ele, ele estava com um ar assustado. Ele tinha-se calado de repente e isso significava algo. De repente o sorriso da minha cara parou e no local que tinha levado o tiro começou a notar-se uma mancha de sangue.
-Axl! - gritei - O que se passa? - perguntei, com um ar assustado. Corri até ele e coloquei a mão em cima do ferimento - Como raio é que fizeste isto?! - refilei, tirando um bocado da mão e reparando que era um ponto. Um simples ponto rasgado. Como é que um simples ponto rasgado pode deitar tanto sangue fora?! Com o braço esquerdo tirei da mesinha um pacote de lenço e tirei o excesso de sangue, de seguida pondo a toalha de há pouco a estancar a hemorragia.

-Não sei - respondi engolindo em seco e tentando mexer-me.Tirei a mão de Amanda assim como a toalha dos meus abdominais e olhei para a ferida com o sangue já a abrandar.-Aquele médico é um idiota e nem pontos a sangue frio sabe fazer - resmunguei com a febre a voltar com força assim como umas pequenas tonturas por causa do sangue.

-Seja como for, estás bem? - perguntei e sentei-me novamente no sofá, bocejando. Comecei a ouvir um barulho da cozinha e lembrei-me da canja - Ups - exclamei e levantei-me, correndo até ao fogão. Rodei os botões para desligar e coloquei a sopa em cima da mesa. Tirei uma colher e um prato e servi. Pronto! Consegui cozinhar uma canja! pensei para mim e levei-a até Axl. - Bom apetite! - desejei, tentando desta vez não me rir.

-Achas que estou bem? - Perguntei com uma voz seca e limpando-me enquanto via aquele prato fomegante e cheio de água com coisas flutuantes por cima a que as pessoas chamavam canja. Fiz uma cara enojada quando senti o cheiro.
- Não tenho fome, mas obrigado, já que estás a tentar não te rir tanto come tu - resmunguei começando a rodar o caldo com a colher e pensando seriamente se ia comer ou não.

Abanei a cabeça - Se eu quisesse há mais lá em baixo. - informei - E come lá, se não fizeres isso por ti faz por mim, que foi a segunda canja que eu fiz na vida! - reclamei, perdendo o sentido de humor e olhando para a sopa. Até que tinha bom aspecto, mas não tinha fome. Um silêncio constrangedor instalou-se na sala e também na minha imaginação, visto que naquele momento não tinha nada em que pensar.

Peguei mais firmemente no prato e comi aquela coisa que não era intragável mas não se adequava ao meu paladar. Mal acabei coloquei o prato no chão e voltei a tentar sentar-me desta vez não rasgando nenhum ponto.
-Prepara-te para visitas indesejadas - disse enquanto vi na janela uma sombra e de seguida um baque na porta. A minha mãe. Eu não ia abrir a porta, não conseguia e mesmo que conseguisse não o faria.

Ouvi a porta a bater e fiquei indecisa se haveria de ir abrir ou não. Ao fim de uns segundos com a mãe de Axl a insistir lá fui. Abri a porta e a mãe de Axl correu até ele - O que está aqui a fazer?! - questionei, agarrando-a pelo braço e impossibilitando-a de continuar - O Axl não quer visitas! - mandei, encostando a porta para que não houvesse nenhum 'importuno' a tentar matar-me também a mim. Duas pessoas na mesma casa que não se conseguem mover não seria nada bom!

-Opá - murmurei fingindo-me calmissimo - mas o que é que tu estás aqui a fazer? - Perguntei e quando ela ia começar a falar eu pus um dedo no ar. - Shiu, vai-te embora, casa é minha, eu mando. Já. Vai-te embora. - mandei mas ela sentou-se vendo os lenços ensopados de sangue.
-O que é que aconteceu? - Perguntou tentando espreitar mas eu tapei com a mão.
-Opá eu disse-te para ires embora. Vai embora! - ela fez uma cara magoada, como se fosse a única que estivesse assim. - O que é que estás aqui a fazer? Não foi para me dar nada para esta porcaria parar de me doer, ou foi? - Perguntei ironizando mas ela realmente tirou uns comprimidos dos bolsos olhando para eles pensativamente. Olhei para eles atentamente enquanto eles estavam a chamar por mim, tanto por necessidade que tinha de parar as dores, como pela necessidade de querer, mas como o meu orgulho é maior. - Não aceito nada vindo de ti -declarei sabendo que amanhã nem punha cá os pés, porque se lembrava do dia que era.- Vais embora agora? - Perguntei novamente não lhe dando espaço para falar e vendo-a levantar-se para se ir embora. Suspirei ao ouvir bater a porta e voltei a deitar-me com calma fechando os olhos sabendo que Amanda me estava a observar.

Observei a cena e manti-me calada, se tivesse de agir, agiria. Fechei a porta sem me despedir da senhora e entrei de novo na sala. Olhei Axl atenta.
-Fico feliz por não teres aceite os comprimidos. - elogiei, fazendo um pequeno sorriso. - Gostaste da sopa? - interroguei, já à espera da resposta, por isso talvez ele simplesmente não respondeu. Tirei-lhe o prato da mão e coloquei-o em cima da mesa, atirando-me ao sofá. - Porque é que te tornaste num drogado? - perguntei do meio do nada, quebrando o silêncio. Porque é que eu nunca me tinha lembrado de perguntar isso mais cedo? Quer dizer, eu sabia que provavelmente ele tinha tido uma infância dura por causa do pai e isso tivesse ajudado, mas eu também tinha tido uma infância dura e não me tornei num traficante de droga.

Não respondi a nada do que ela disse, mas tenho que admitir que a sua ulitma pergunta era díficil de responder. Deitei-me mais confortável no sofá e tapei-me com uma manta.
-Para que queres saber isso? - perguntei-lhe mas ela não respondeu, então decidi que ia contar, afinal já lhe tinha contado a parte mais dificil. - Imagina sangue na tua cara - fiz gestos com a mão na cara - Uma arma á tua frente. O teu pai morto à tua frente. Uma mãe a culpar-te e a dizer a todos os teus irmãos, incluindo o teu irmão gémeo a quem confiavas a tua vida que tu tinhas morto alguém com doze anos. - levei a mão à cabeça para intensificar a minha idade. - Não preferias esquecer? - Perguntei - Eu sim, pelo menos ajuda. - disse como se fosse muito simples e fechei os olhos com um suspiro.

Imaginei o sangue na minha cara e não me senti bem. Quer dizer, tinha sido eu a descobrir a minha mãe sem pulsos na banheira quando voltei da escola. Tinha sido eu a chegar da escola e a chamar 'Mãe!' e ninguém responder, e após uma grande procura descobrir uma banheira inundada de sangue com a minha mãe lá dentro. Era como se tivesse tomado o seu próprio banho de sangue. E claro, eu também tinha visto o meu pai a desaparecer. Num dia de chuva, após a escola, bati à porta e ninguém me abriu. E continuou sem abrir. E após 3h à porta à espera de alguém que abrisse, a policia passou e descobriu que não estava ninguém em casa. Fui eu que fiz essas descobertas, mas é sempre melhor fazer as descobertas a ver a própria descoberta a ser feita à nossa frente. Ouvir o som de uma arma e não podemos fazer nada para impedi-la. E eu sabia que as drogas ajudavam a passar a dor, tanto que me tinha drogado mais que uma vez mas esquecendo rapidamente a possibilidade de ser uma drogada. Eu não era uma pessoa de drogas. Quanto muito, de bebida. Isso era. Uma bêbada. Embora, há uns dias não bebesse.
-Chegaste a pensar noutras... hipóteses? - perguntei, sem eu própria saber quais eram as outras hipóteses. Afinal, eu tinha-me tentado suicidar mais que uma vez. Isso era uma hipótese para mim, mas para ele?

Olhei para Amanda não à espera daquela pergunta, novamente fiquei um bocado sem saber o que dizer. Sim, tinha pensado, oh quantas vezes! Mas para quê? Quando tinha quinze anos e a morte do meu pai ainda estava meia fresca tinha drogado tanto e feito tantas misturas que fui parar ao hospital mesmo para morrer. É claro, isso não foi uma tentativa de suicidio, mas também dei um pouco mais de valor à minha própria vida.
-Sim. - Acabei por responder olhando pela primeira vez para ela.

Lembrei-me de lhe mostrar uma coisa. Algo que talvez não o fizesse sentir-se único no mundo. A única razão para eu não me ter tornado também numa drogada foi ter tentado aquilo, imensas vezes.
-Quero que vejas uma coisa. - murmurei, levantando-me do sofá apoiada pelos braços e sentando-me ao pé dele. Mantendo-me calada, tirei as braceletes e pulseiras que tinha e puxei as mangas para cima - Estás a ver isto? - perguntei, apontando para marcas onde tinha tentado cortar os meus pulsos - Encontraram-me a tempo. Não me deixaram ir até ao fim. - admiti, tentando evitar que as lágrimas me escorressem dos olhos e lembrando-me daquele dia como se fosse ontem - Não sei porquê. Nunca soube. Eles não me queriam e eu não queria estar ali. - confessei, com uma voz fina e chorosa. - E não foi apenas isto. - confessei, mas manti-me calada. Mesmo em pequena eu não era parva. Sabia que se não conseguia de uma maneira, haveria outras.

Olhei para ela enquanto me mostrava as cicatrizes e peguei no seu pulso.
-Eu sou um drogado com consciência, tu és sadomasoquista, fazemos um belo par - brinquei passando os dedos pelas linhas brancas e irregulares na pele dela. - O que é que tentaste mais? - Perguntei.

Ri-me com a sua piada. Aquele momento estava a ser um pouco... lamechas (?) mas afinal, não eram as raparigas que adoravam conversas sobre sentimentos?!
Não interessa. - respondi-lhe num tom um pouco irritado, simplesmente irritada comigo própria. No mesmo momento que disse aquilo puxei as mangas para baixo. Ele queria mesmo saber o que eu tinha tentado fazer? Eu tinha tentado tomar os comprimidos todos da minha tia para ter uma overdose, eu tinha tentado enforcar-me, eu tinha tentado pôr-me em frente a um autocarro, eu tinha tentado atirar-me dum prédio... Se Deus existe, ele não quer que eu desapareça deste mundo.

Peguei no seu pulso e ela ficou a olhar para mim.
-Deixa-me... ficar a ver - pedi desviando a manga - não precisas de ter vergonha, ou... o que quer que tenhas. - não, não lhe estava a responder mal ou a deixa-la em baixo ou a responder-lhe apenas como eu, Axl McDonell respondo às pessoas. Ela precisava de apoio e eu também, a diferencia é que ela eu já recebia dela, mas ela não recebia meu. O mais estranho, era que eu não prestava para isto, não tinha a habilidade de conseguir acalmar as pessoas, pelo contrario, costumava mais assusta-las e fazê-las fugir. - Eu interesso-me. - admiti.

Olhei para ele e fiquei nervosa. Ele estava mesmo interessado? Era mesmo Axl ou era o irmão. Quando me convenci finalmente que Axl estava a apoiar-me, senti um sorriso rasgado a invadir a minha cara. Apontei para uma das cicatrizes.
-Vês esta? A mais clara mas mais... mal feita? - olhei para ele - Foi a primeira de todas. Tinha 9 anos. - informei, voltando a olhar a cicatriz e tentando fugir às outras maneiras que eu tentei de suicídio.

Olhei para a a cicatriz e depois para ela.
-Nove anos? - Perguntei. Infância arruinada, eu sabia o que era, mas aos nove anos eu ainda era um menino do papá. - Não me vais dizer mais pois não? - Olhei-a, a verdade era que estava um pouco curioso de mais e também ajudava a esquecer o ardor na minha barriga.

-9 anos. - repeti. Sim, era verdade. - Para que é que queres saber mais? - interroguei. Se ele me desse um bom motivo, eu mostraria algumas das minhas cicatrizes. Mas as verdadeiras? Essas estavam no meu interior. E eu não me esqueceria delas. Com ou sem drogas. Sem a resposta dele, mentalizei-me que não haveria problema em mostrar mais uma. Enrolei o meu cabelo que tapava outra cicatriz no pescoço e pu-lo para o lado. Coloquei o meu dedo indicador onde sabia que havia uma ferida horrível - Aqui - declarei

Quando ela me mostrou a outro no pescoço eu ergui a sobrancelha. como é que ela não está morta?
-Porque quero conhecer-te - respondi-lhe - acho que devo... tudo o que sabes de mim e pensas é que eu sou um drogado que teve a infância arruinada, mas eu não sou só isso. Tudo o que eu sei sobre ti é que odeias a tua prima e tens um momento de coisas nessa cabeça. - encolhi os ombros. - Mais nada, mas não és obrigada - deitei a cabeça para trás.

Aquilo estava a ser... estranho. Eu só sabia que ele era um drogado. E tinha tido uma infância dura. E que matava pessoas. E que a policia andava atrás dele. E no entanto, após ele me magoar imensas vezes, eu continuava a perdoá-lo. Aquela devia ser a primeira vez que ele estava a pedir-me para confiar nele sem ser em não ir atrás de drogados por ter medo.
-Então, conhece-me. - apresentei-me - Eu tentei suicidar-me muito mais que sete vezes, por isso a simples hipótese de ser uma gata já se extinguiu. - brinquei - Eu já me tentei enforcar, já me tentei atirar um prédio, já me tentei pôr em frente de um autocarro... Acho que há algo que me está a prender nesta vida. - murmurei. Alguém já ouviu falar que 'everything will be ok in the end. If it's not ok, it's not the end' ? Já foi o meu lema de vida. E achei que por isso é que todos os meus suicidos tinham falhado. Mas no entanto continuava a achar que não estava ali a fazer nada e que poderia desaparecer a qualquer momento, agora ou daqui 100anos.