A Cozinha

Sentei-me na cozinha a comer o meu pequeno almoço, leite com cereais e perguntava-me se a minha companheira de quarto que ainda nem conhecia já tinha chegado.
Suspirei quando percebi que não tinha nada para fazer. Tinha saudades do casa cheia e dos gritos dos meus irmãos. Levantei-me e arranjei a minha mala indo para o sitio que mais conhecia. Big Ben.

Sentei-me em cima do balcão.
-Não, mas tenho de ir ao.. - tossi - Hospital... - olhei para ele, esperando uma resposta minimamente simpática.

Depois de a colocar no chão fui buscar um chupa chupa que estava numa das gavetas e atirei-lhe um.
-Não, mas tenho de ir ao.. - tossiu - Hospital... - Tirei o chupa da minha boca e suspirei.
-Precisas mesmo? - Perguntei-lhe tirando umas taças para fazer cereais, que felizmente já existiam.

Deixei o chupa chupa de lado, era um bebé e não fazia a menor ideia do que comer ou não comer.
-Preferes que faça uma corridinha por Londres e ande com o bebé às voltas na barriga? - perguntei, irónica. Levantei-me do balcão e dirigi-me ao pé dele.

Revirei os olhos e suspirei
-Está bem, como queiras. Queres que vá? - Perguntei dando-lhe os cereais.

Comi uns quantos cereais, mas não tinha fome.
-Se quiseres.. - não o queria obrigar a ir, mas...ele é que era o pai, por isso fiz carinha de cão abandonado

Comi e bebi os cereais e o leite e olhei-a.
-"Se quiseres" - imitei-a - e depois fazes-me essa cara - ri-me. - Eu vou.

Despejei o resto dos cereais na taça dele e vesti o casaco.
-Obrigada. - ri-me, irónicamente. Sentei-me no balcão de novo, à espera dele.

Acabei de lavar a loiça e desliguei a água, encostando-me ao balcão e olhando Axl de alto a baixo.
-Eww, Axl, pelo menos uma t-shirt! - queixei-me, sem estar a espera de o ver assim vestido logo pela manhã. Não é que não conhecesse bem já o corpo dele, só que... pronto.. era esquisito. - Já estás melhor? - acabei por perguntar, mudando de assunto

Sorri acabando com o copo de água e fui na direcção de Amanda.
-Não me digas que não estás a gostar do que vês - disse-lhe encostando-a mais ao balcão e com a cara perto da dela contendo-me para não fazer coisas estúpidas como sempre fazia.

Fiz um sorriso perverso.
-Gostar até gosto mas... - dei-lhe o pequeno beijo na boca e afastei-me novamente deixando as nossas caras a poucos centímetros de distância - Ainda é de manhã! - brinquei, colocando os braços à volta dele e olhando-o.

-De manhã têm-se sempre mais pica - abanei os ombros virando costas e fingindo-me desinteressado. - tu é que sabes. As outras gajas adoram cicatrizes. - piquei-a pegando numa maçã.

-Oh, sim, a sério? - provoquei-o e dirigi-me até atrás dele. Mordi-lhe a orelha e tirei-lhe a maçã da mão e dei uma dentada - Os outros gajos também adoram olhos azuis - tentei fazer-lhe ciúmes e passei os dedos calmamente pela cicatriz dele.

Olhei para baixo para a mão de Amanda que passava pela minha cicatriz e voltei a olha-la.
-Pois, já olhaste para os meus? - Perguntei - castanho e louro combina sempre bem - abanei as sobrancelhas para cima com um sorriso vencedor.

Ai é? - tirei a mão da cicatriz dele e afastei-me dois metros, encostando-me ao balcão novamente - Então vai lá à procura delas! - cruzei os braços e fingi-me amuada, olhando para baixo. Tal como as crianças faziam e os adultos caiam, o Axl também caía sempre naquele truque.

Revirei os olhos com um sorriso mais calmo e aproximando-me dela.
-Mimada. - Acusei levantando-lhe a cabeça e fazendo-a olhar para mim enquanto fazia com que o corpo dela ficasse colado ao balcão. - E ciumenta. - não consegui evitar rir-me - admite que tens ciumes.

Fiquei a olhar para ele tentando não me rir para que a minha dramatização fizesse sentido mas acabei por me rir e quando o riso acabou dei-lhe um beijo que o distraiu e me deu espaço para ir para o outro lado dele.
-Oh sim, muitos ciúmes. - gozei e ri-me atrás dele.

Virei-me para ela que se ria que nem uma maluquinha e abanei a cabeça.
-Está visto que tens. - encolhi os ombros pegando novamente na minha maçã e ouvindo a campaínha a tocar. Fui até à porta e era o carteiro. Entregou-me um envelope gigante e percebi que eram os meus resultados. Abri o envelope enquanto ia para a cozinha e li-o encostado ao balcão. Saltei algumas partes chatas até que cheguei à parte do diagnóstico e deixei cair a minha maçã no chão vidrado no papel. Estão a gozar comigo certo?

Fiquei calada enquanto abria o papel, ainda com um sorriso na cara. Esse sorriso passou quando vi a reacção dele.
-O que se passa? - perguntei, preocupada e fui até ele. Encostei-me a ele e olhei para a carta, comecei a lê-la rapidamente até chegar à parte do diagnóstico. Mas... aquilo pode estar errado, certo? foi a minha primeira coisa a pensar. Olhei para ele - Axl... - murmurei, a medo da resposta dele. Sim, uma suicida com um rapaz com esquizofrenia que por acaso também era drogado, estava visto que ia ser uma dupla excelente.

Olhei para Amanda que estava ao meu lado até que a dado momento comecei a rir-me. Ri-me por um bom tempo e até tive que me dobrar porque os meus musculos já me estavam a doer.
-Acho que se enganaram no nome - disse ainda aos risos. - Estão a gozar certo? - comecei a ficar mais sério até que o meu riso desapareceu.

Fiquei especada a olhar para ele até ele se parar de rir.
-Axl... acho que eles não se enganaram... - acabei por informar, sem saber bem qual iria ser a reacção dele. Sinceramente, nem sabia a minha, visto que não me tinha mentalizado bem daquilo completamente. O Axl... esquizófrenia? Bem, ele tinha uma certa razão, eu nunca tinha notado sintomas disso nele; claro que nunca tinha tentado procurar porque realmente isso era uma coisa que nunca me passaria pela cabeça. Mas eu já devia estar habituada, visto que tudo acontece quando não me passa pela cabeça: a minha irmã com cancro, a minha mãe a suicidar-se, o meu pai a fugir, eu a ir viver com os meus tios, a minha prima a roubar-me amigos e namorados, eu grávida, eu a perder os meus filhos, eu a ser raptada, eu a ser esfaqueada, o Axl a levar um tiro... sim, pois. Que raio de vida.

-Amanda! - Gritei chamando-a à razão - isto está errado, eu não tenho nada desta porcaria, eu não sou igual ao meu pai eu não vou ter um filho e matar-me à frente dele - inclinei-me para a frente com as mãos apontadas para mim e rasguei o papel colocando-o depois no lixo. - Que treta.

Ouvi a resposta dele e manti-me calada uns segundos. Ele podia estar certo. Mas o mais provável era estar errado e estar ali com esquizofrenia achando que não ainda era pior. Eu também me queria mentalizar que eles podiam estar errados, mas sabia que quando enchia a minha cabeça de expectativas acabava por ser pior.
-Axl a sério, eles até podem se ter enganado mas isso raramente acontece e tu sabes disso! - argumentei e fui atrás dele - Não finjas que não estás assustado com o facto de provávelmente teres esquizofrenia! - pedi, aumentando o meu tom de voz.

Cerrei os dentes com força olhando para ela e sentindo as minhas sobrancelhas unirem-se.
-Não. - Neguei saindo daquela cozinha que já me estava a dar vomitos. Eu não estava só assustado, estava apavorado. cala-te, não estás nada assustado Respirei fundo indo para a sala e ligando a televisão como se nada fosse.